Texto por Safira Ferreira [1]
Mais um dia.
Felícia andava apressada pelos corredores daquele escritório. Suando frio e mantendo o foco nas pontas dos sapatos, que alternavam conforme dava seus passos; ela sente olhares lhe tocando as costas, mas não diz uma palavra; até pensa em dizer, e tem flashes curtos em que se imagina conseguindo gritar, xingar e cuspir as palavras ameaçadoras e chulas a pedido de seu sufoco. Mas não ali. Não podia ultrapassar esse nível, não mais.
Piso gelado, retinha o som de passos sobre ele, indo para lá e pra cá. Telefone, teclas, sons de notificações em aparelhos e monitores.
Menos vozes.
Ao abrir a porta de sua sala, entrar e fechar logo em seguida, Felícia suspira apoiando-se na maçaneta. Ainda era possível ouvir os sonares que embaraçavam sua mente. Mas ela se concentra, caminha até a mesa, e por uma infelicidade misturada com curiosidade e vontade de se arrepender, ela olha seu reflexo no vidro da janela. Ali estava, e ficaria por meses, a marca de sua condenação.
Menos um dia.
Felícia havia sido presa injustamente, por uma fraude na empresa. Descobriram o culpado e ela voltou, dado o desinteresse do chefe em substituí-la. Entretanto, como todos os condenados, a moça agora levava a marca vermelha em seu mapa digital.
Há alguns anos, os cientistas haviam dado início àquele experimento monstruoso, que na época teve sucesso; já que foi criado com o intuito de proteger as pessoas, as livrando de fraudes, por exemplo – uma vez que apareciam dados de confiança, perigo, etc, de cada indivíduo, em seu mapa digital visível a olho nu, acima da cabeça. Contudo, por mais que a intenção fosse boa, cada vez mais pessoas adoeciam, devido ao mal uso de alguns, e ao costume ferrenho de julgamento que a humanidade foi aprimorando ao passar dos anos.
Todos tinham esse mapa tecnológico em si, que ao habilitar uma função, permitia que apresentasse visível os dos outros ao redor, por intermédio de uma imagem digital que aparecia em cima do tronco do indivíduo; nessa imagem apareciam dados gráficos que mostravam habilidades, ciclo social, e perigo, da pessoa. E claro, que havia também a opção de bloquear alguém, e ao fazer isso, seu mapa ficava cinza a certas pessoas; e assim, quando houvesse insistência em manter contato, se subia uma fase no seu perigo. Há intenções boas, que já salvaram a vida de muitas pessoas, porém não mais.
O perigo tinha fases, assim como as outras habilidades e dados mostrados, e o de Felícia, estava na fase vermelha, crucial; mais um delito – ou a suspeita de algum – e ela iria viver “na caixa”, que é um espaço reservado aos que foram julgados injustamente, ou melhor, apenas julgados pelo povo, mesmo sem terem sido presos ou algo do tipo; era composto por pequenas construções de cimento em formato quadrado, no meio do deserto, sem decoração e nada além de silêncio – e de poucos alimentos (tanto para o corpo, quanto para a alma).
Um cemitério vivo. Uma falsa liberdade.
Mais vozes.
Felícia havia sido bloqueada por colegas, amigos e até familiares, após o ocorrido na empresa; mesmo sendo considerada inocente, ninguém mais a olhava como antes, quando se tinha nível vermelho em perigo. Essa marca vermelha a proibia de frequentar locais, ganhar prêmios, conquistar metas… Ela estava fadada a viver de forma monótona e praticamente isolada, em todos os seus dias.
Pelo menos tinha um emprego; pensou a moça enquanto despejava água quente numa xícara de porcelana, ao lado de sua mesa; entretanto, era a única coisa que teria. Felícia não se sentia mais útil ali, havia se tornado uma peça descartável no sistema, e não queria mais fazer parte dele, pelo menos não ali, não naquele emprego, não os fazendo lucrar com seu descontentamento.
Menos de mais.
Colocou o sachê de chá na xícara, e pensando em beber, os pensamentos ventilados a tomaram e causaram uma tempestade em Felícia, o que a fez suspirar e cerrar os olhos de ódio, raiva absoluta transmitida com tremor aparente e nó interior.
Ela não bebeu, não conseguiria engolir.
A porta é presenteada por leves batidas, chamando a atenção dela. E num rápido movimento, Felícia pega um controle em sua mesa e clica num botão qualquer, que fez a porta abrir. Era seu chefe, repugnante homem de terno, que comendo castanhas de forma grotesca, começara a falar com a boca cheia sem parar. Afrontes, xingamentos em tons irônicos, cuspes propositais… Chega! Felícia se sentiu explodir por dentro, não poderia mais aguentar isso calada. Falou, gritou, e o calou.
Ao receber seu afronte, com um sorriso cínico, o chefe delicadamente a bloqueou. “Agora ouça calada, em todas as vezes. Ou será que gostaria de entrar na caixa?”, ele disse calmamente enquanto direcionava seu olhar à marca vermelha no mapa de Felícia.
Ela nada mais viu. De súbito apenas notou a cena depois. O rastro de água fervendo na mesa, que deixara ao jogar o líquido quente na cara de seu chefe; qual aos prantos, berrava de dor.
Em meio a esperneios e sons chocados de uma plateia que logo surgiu, Felícia viu sua marca vermelha subir ao último nível.
Mais de menos.
Seu despejo não demorou muito. Mal deu tempo de se despedir de suas vistas das janelas. Ela então guardou apenas lembranças, em que nenhuma sabia que seria a última vez. Levou uma foto da infância, com sua família, foto essa que conseguiu esconder nas vestes enquanto os oficiais vasculhavam sua casa e sadicamente reviravam todos os motivos que ainda faziam Felícia sorrir.
“Caixa 137!”. Foi a última coisa que ela ouvira alguém dizer, antes de adentrar ao outro lado do muro, à caixa. Seus pertences permitidos mal cabiam numa trouxa de pano.
Felícia carregava a foto apertada em sua mão, e logo que colocou os olhos na paisagem que a aguardava, ela mal notou as pessoas circulando ali, com vestimentas iguais as dela – cruas; pois seu olhar aderiu ao aspecto inexpressivo, como se a alma fosse deixada ao lado de fora.
Mas se pensar bem, não era exatamente isso que acontecia?
Pelo menos agora era uma peça inútil que enfim teria paz – mas nunca saberia disso.
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[1] Aluna do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM, estagiária AICOM e integrante do NERD