Por Letícia Lemos, Letticia de Jesus, Maria Laura Restino e Vitoria Fontes. [1]
Supervisão de Prof. Wiliam Pianco. [2]
O setor judiciário é conhecido por sua majoritariedade masculina. De acordo com a escritora Joice Berth, na coletânea “Feminismos Plurais”, declarou que:
“Diferentemente do que propuseram muitos de seus teóricos, o conceito de empoderamento é instrumento de emancipação política e social e não se propõe “viciar” ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de dependência entre indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de como cada um pode contribuir e atuar para as lutas dentro dos grupos minoritários”.
Apesar da grande quantidade de mulheres que ingressam no setor judiciário com o intuito de se preparar para encarar os mais diversos desafios da área, ainda assim, a predominância é masculina.
E uma das principais dificuldades que a mulher enfrenta no setor judiciário é ter que a todo custo provar sua competência e intelectualidade, além de diariamente conviverem com comentários sobre sua aparência e situações de assédio.
As diferenças de desempenho são aparentes quando se analisam as posições políticas mais relevantes dentro do sistema de classes.
Embora sejam recrutadas mais advogadas para o quadro de funcionários da OAB do que advogadas do sexo oposto, os cargos de nível superior ainda são dominados por homens.
Apesar de fazer mais de 100 anos que a primeira advogada abriu a porta para outros colegas (Mhyrtes Gomes de Campos), ainda não temos o Presidente da
Comissão Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, situação em que as mulheres ainda são tímidas sobre a participação em capítulos.
Em seu papel institucional, a Ordem se destaca na luta pela igualdade de gênero, melhorando as condições de trabalho das advogadas por meio de ações de conscientização e buscando tratamento diferenciado.
No entanto, apesar de todo o trabalho realizado pela agência de classe para melhorar a qualidade de vida profissional das advogadas, quando analisamos o número e o gênero dos cargos ocupados, como o cargo de presidente do Conselho Federal da OAB, tivemos os seguintes resultados:
Basta olhar para outras áreas do direito e da política (como o STF, o Plenário Nacional e o Conselho Federal) para perceber essa diferença.
Essa situação revela uma questão de porquê tais diferenças de gênero ainda são observadas no século XXI, com tais lutas e representações das mulheres.
E foi pensando nesse cenário histórico e com o intuito de entender um pouco mais a fundo sobre a presença do empoderamento feminino no setor judiciário que hoje conversaremos com a Dra Cintia Perez, advogada civil, trabalhista, direito da família e sucessões, e direito do consumidor.
R: Primeiramente boa noite! Gostaria de agradecer a contribuição da doutora para conosco, e de antemão explicitar minha admiração. Agora, vamos lá…
R: Por gentileza, poderia se apresentar para nós, falar um pouquinho da pessoa por trás da profissão e sua formação.
E: Boa noite, desde já gratidão por lembrar-se de mim e me dar esta oportunidade. Espero que não a decepcione.
Me chamo Cintia Batista Santos Perez , tenho 47 anos, sou casada há 24 anos e mãe de dois filhos lindos (Davi, 16 anos e Tiago, 19 anos) e pós-graduada em direito do trabalho, direito civil, direito de família e das sucessões. Atuo também como professora de várias disciplinas relacionadas ao direito no Centro Paula Souza/ETEC; coordenadora de projetos (Setor UFIEC – Programa Aprendiz Paulista do Centro Paula Souza); presidente da comissão “OAB vai à escola” – Subseção de Itaquera pelo 3º mandato; e pós-graduanda em direito do consumidor.
R: Na infância, dizemos o que queremos ser ao crescer, e você ? Gostaria de ser o quê quando crescesse? O direito/advocacia já era um sonho quando ainda criança?
E: Quando criança, aos 06 anos de idade, dizia que queria ser desenhista projetista. Aos 09, dizia que queria ser investigadora de polícia. Aos 11 anos decidi que queria ser advogada.
R: Quando e qual foi o seu primeiro contato com o direito/advocacia? Em que momento você se viu pensando em querer ser advogada?
E: Uma professora de língua portuguesa do ensino fundamental – profa. Marilena – nos sugeriu como trabalho que fizéssemos um dossiê, entrevistando alguém da carreira que gostaríamos de seguir. Um dia também fiz uma entrevista como esta! Rs
Entrevistei um primo meu que era advogado. Ali tive a certeza do que queria ser profissionalmente, mesmo vindo de uma classe miserável. Meus pais trabalhavam duro para tentar manter o mínimo necessário para sobrevivência; passei por muitos desafios e necessidades, inclusive fome e falta de ter o que vestir
Na escola, passei por muitos constrangimentos por ser pobre. Não entreguei o mapa de geografia com o oceano pintado de azul porque não tinha lápis ou giz de cera nesta cor e ninguém me emprestou a tempo. Tirei nota vermelha por causa disto. Inesquecível! Mas sempre acreditei que um dia seria advogada e que não mais passaria por estes perrengues (passo por outros, mas tudo bem! Rs).
R: Você teve alguma influência no momento em que escolheu ser advogada civil? Qual foi a sua maior motivação no momento de decisão e quando o maior “empecilho” que você enxergou na época?
E: Na verdade, iniciei como advogada generalista. Não dava pra escolher. Prestei meu exame de ordem e passei no primeiro. Escolhi Direito do Trabalho para a segunda fase deste exame, por ter familiaridade com o tema e acabei passando. Assim que me entregaram a carteira da OAB, abri um humilde escritório e fui pegando tudo o que aparecia! Rs
Não chamo de influência, mas tive um mentor no estágio da faculdade, que sempre me incentivou a praticar todas as áreas e depois escolher a que mais me agradasse, Dr. Jorge Shiguetero Kamiya, o qual tenho profunda admiração. Por incrível que pareça, minha maior motivação para ser advogada foram os “nãos” que recebi. Comecei a trabalhar com 14 anos como datilógrafa, sempre com foco na advocacia, mesmo sabendo que o curso já era caro naquela época e não tinha até então condições nenhuma de pagar. Graças aos “nãos” eu cheguei aos “sins”, portanto minha motivação foram os pensamentos negativos que puseram sobre mim, e o maior empecilho era o financeiro.
R: O que você ouvia de outras pessoas quando falava sobre fazer direito e ser advogada?
E: Depois de formada, ouvi que não conseguiria tirar a carteira da Ordem logo de “cara” porque era difícil. Assim que tirei, ouvi que não conseguiria trabalhar na área pela competitividade e que não tinha dinheiro para abrir um escritório. Assim que abri o escritório, ouvi que não conseguiria bancá-lo porque o custo era alto. Também ouvi pessoas dizendo pra largar a profissão pois era pra “gente rica”, não de pessoas de origem humilde como a minha, e também ouvi falarem que é uma profissão “de gente que não tinha caráter”.
R: Qual foi o seu primeiro impacto ao entrar na faculdade de direito? O curso tem a “fama” de ser liderado por homens, você como mulher, como se sentiu entrando em uma sala de aula que em sua maioria era formada por homens?
E: Eu fiquei muito feliz em concretizar o primeiro passo de um sonho. Me assustei com o número de pessoas, mas fiz amizade imediatamente com pelo menos umas 10 pessoas já no primeiro dia. De fato, havia mais homens na sala, mas nunca liguei pra esse negócio de homem e mulher. Sempre fiz minha parte naturalmente. Dizem que tenho perfil de líder. Não sei. Nos trabalhos acadêmicos, a turma era mesclada (homens e mulheres), mas instintivamente eu sempre tomava a frente… rsrs. Nunca me senti menosprezada por ser mulher, até porque sempre me impus como profissional, independente do meu gênero e era respeitada por isto.
R: Competência e Intelectualidade são habilidades que fazem parte de qualquer profissão. Desde a graduação, você precisou provar essas habilidades diariamente não somente para si como para os demais? Se sim, como foi esse processo? Hoje, vendo de fora, você faria algo diferente?
E: Nunca precisei provar! Como eu disse, sempre agi de forma natural, respeitando as pessoas na sua essência e acho que por isto também obtive respeito e talvez admiração. Aliás, até hoje quando alguém diz que me acha inteligente/competente fico extremamente sem graça, pois não me vejo tanto assim. Me sinto um ser humano “normal”, cheio de falhas e que está em busca de aperfeiçoamento constante. Não faria nada diferente do que já fiz.
R: Após concluir a graduação, qual foi a sua primeira experiência ao tentar se inserir no mercado de trabalho de advocacia? Quais foram os desafios? E você acredita que esses mesmos desafios foram enfrentados por homens na mesma situação?
E: Sempre fui muito positiva, apesar de vários desafios que enfrentei na vida e na profissão. Após concluir a graduação, meu primeiro desafio foi realizar uma audiência sozinha, pois por insegurança sempre pedia a uma amiga que as fizesse. Até que um dia minha amiga não pôde ir e eu tive que me virar sozinha. Até hoje tenho frio na barriga às vésperas das audiências. Me preparo muito, mas é sempre muito tenso. Mas faz parte do negócio, né? Acredito que os homens também são inseguros, talvez até mais que as mulheres, mas não demonstram tão abertamente.
R: Como você se sente sabendo que apesar do maior recrutamento da OAB ser de advogadas, na verdade, são os advogados que ocupam as cadeiras ?
E: Acho que isso está mudando ao longo dos anos e as mulheres cada vez mais têm buscado ampliação de seus conhecimentos e melhores lugares no mercado. Um exemplo claro é que na última eleição para Presidente da OAB do Estado, uma mulher ganhou e assumiu uma função que “tradicionalmente” era ocupada por homens. Acredito que a questão não é mais de gênero, mas de imposição de cada qual no seu espaço. Tudo é possível. O sol nasce pra todos, cabe a cada um fazer sua parte e buscar melhorias para sua vida. Conheço muitas mulheres que se contentam em serem donas de casa, e se sentem felizes com isto. Também conheço várias que gostariam de estudar e trabalhar, mas não têm incentivo familiar. Outras, não têm coragem…outras tentaram e conquistaram seus objetivos.
R: Você já passou por um episódio envolvendo assédio? Seja ele moral, físico, etc? Pode nos contar como foi e o que você fez?
E: Não chamo de assédio, mas de “cantada” ou “flerte”. Modestamente tive vários! Levei tudo na brincadeira e me fiz de desentendida. Deu certo.
R: Algum cliente já recusou atendimento por você ser mulher e por acreditar que somente advogados homens têm a competência e a habilidade no tribunal?
E: Nunca tive essa infeliz experiência. Todos os clientes que vieram até a mim foram por indicação do meu trabalho, nunca em função de gênero.
R: Com que palavra você resumiria o direito no Brasil ?
E: Retrógrado
R: Qual o maior desafio com o machismo que você já passou ou presenciou na sua carreira como advogada?
E: Sinceramente, não me recordo de ter presenciado ou passado por uma situação assim na carreira. Na verdade, sempre me impus como profissional e nunca deixei que me olhassem com indiferença em razão de eu ser mulher. Sempre cheguei nos lugares demonstrando afetuosidade e confiança (mesmo tremendo por dentro) e acho que o comportamento que sempre tive acabou por desmotivar qualquer tipo de discriminação.
R: Se pudesse dar um conselho para as mulheres que sonham em entrar no direito, o que você falaria?
E: Concretizem seu sonho! Tudo é possível ao que crê.
Quando eu estava no terceiro ano da graduação, engravidei do meu primeiro filho. Estava tudo programado e o parto aconteceria no final do ano, após as provas finais da faculdade. Todavia no sexto mês da gestação descobri que estava com pedras na vesícula e não
poderia operar em função do bebê. Tive que aguentar as dores com ele na barriga, até que do sétimo pro oitavo mês, uma das pedras saiu da vesícula e foi parar num canal chamado colédoco e fui internada.
Veio uma junta médica me examinar e o prognóstico não era bom. Chamaram minha família e avisaram que corríamos risco de vida .Os médicos estavam esperando que meu organismo expelisse a pedra que estava entalada sozinho, sem necessidade de intervenção cirúrgica. No dia em que chamaram meu esposo e pais para anunciar que talvez não sobreviveríamos mais, meu filho resolveu nascer. Ele nasceu com 3 voltas do cordão umbilical no pescoço. Foi direto pra UTI neo-natal. Pesava 2.050kg, apenas.
Meu filho ficou no hospital pra ganhar peso. Neste período sofri muito, pois tinha ainda as dores da vesícula, a dor de ficar sem meu filho e ainda tive que ir pra faculdade fazer as provas finais.
Meu filho saiu depois de 05 dias na UTI e neste intervalo fiz uma carta pra ele prometendo que passaria no primeiro exame de ordem e que me dedicaria a ele até que completasse a maioridade. Contra uma sentença de morte, sobrevivemos e cumpri minha promessa. Hoje meu filho está com 19 anos, trabalha e estuda. Minha família é a minha são as provas de que vale a pena investir nos sonhos. Dedico tudo o que sou a Deus, a meus pais, a meus filhos e ao meu esposo.
R: Em nome de toda a equipe, gostaria de agradecer a sua disponibilidade e contribuição para conosco, e dizer que ficamos gratos em ter acesso a uma jornada profissional tão inspiradora quanto a sua.