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O que é o trabalho do cuidado? Professoras avaliam assunto que é tema da redação do Enem 2023

“Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” foi o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio 

Reportagem: Camila Vilas Boas [1]  

Supervisão: Prof. Gean Gonçalves [2]

 

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023 é “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. A redação acontece no primeiro dia de aplicação da prova, que também abrange 90 questões das áreas de Linguagens e Ciências Humanas. A nota da redação, que pode chegar a mil pontos, tem um peso muito grande para o resultado do Enem e é avaliada levando em consideração cinco competências, entre elas a elaboração de proposta de intervenção para o problema abordado e respeito aos direitos humanos. 

O tema foi muito comemorado nas redes sociais, principalmente pelas mulheres. Para a professora e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense Samara Brochado, que pesquisa sobre a (in)visibilidade do trabalho doméstico não remunerado na comunicação, um ponto importante é, não só pensar o papel de gênero, mas também o recorte racial da maior parte das trabalhadoras do cuidado.  

“A gente precisa pensar nesse cuidado sim, de um ponto de vista atravessado em gênero, mas precisamos primariamente analisá-lo a partir da visão que nós somos um país escravocrata em sua origem, portanto, a gente acha que o trabalho doméstico tem que ser de graça, porque sempre foi assim. E assim a gente consegue entender, por exemplo, porque é que hoje o trabalho doméstico no Brasil é desvalorizado”. 

Um dos textos de apoio apresentados ao tema foi escritora negra Carolina Maria de Jesus, que ficou muito conhecida pelo seu primeiro livro “Quarto de despejo: Diário de uma favelada” em que compartilha as dificuldades de criar seus três filhos na favela do Canindé, em São Paulo, enquanto trabalhava como catadora de lixo. Carolina conseguiu publicar seu diário, mas foi retratada constantemente como favelada e não como escritora. No fim de sua vida teve que voltar a trabalhar como catadora, sendo descartada como autora e voltou a morar na favela, em um sítio em Parelheiros, local que morreu de asma aos 63 anos. 

Foto: Reprodução 

Outra questão a ser levantada dentro do tema é o desvio da função dessas cuidadoras, que a assistente social e professora do curso de Serviço Social da FMU, Eloisa Gabriel, comenta:  

“Muita gente vê a empregada doméstica como uma cuidadora e ela é muito mal remunerada. Eu conheço muitos casos de mulheres que são empregadas domésticas e na família para qual ela trabalha tem um idoso que está acamado ou tem dificuldade de locomoção, que precisaria de uma cuidadora e a empregada doméstica fica com essa função, só que ela não tem a formação de como dar banho nesse idoso, como tirar ele da cama.” Ela também cita o passado escravocrata como suporte para esse desiquilíbrio: “Mesmo com a pandemia, em que algumas famílias precisaram se ‘virar sozinhas’, já que elas nunca tinham cozinhado, lavado o banheiro ou lavado roupa e tiveram que fazer, não aprenderam a valorizar esse trabalho, então ainda é uma herança do período da escravidão.” 

O cuidado é invisível 

Em vídeo publicado há três anos no canal do programa de TV Greg News no Youtube, o humorista e escritor Gregório Duvivier discute a importância do cuidado e apresenta dados do relatório “Care Work and Care Jobs for the future of Decent Work”, que aponta que mulheres fazem três quartos da quantidade total de trabalho não remunerado de cuidado e que dois terços dos trabalhadores de cuidado são mulheres. Algumas das profissões dentro do papel de cuidadora que são citadas são: professora, enfermeira, assistente social. Esse relatório também mostra que em nenhum país do mundo, homens e mulheres têm uma divisão igual do trabalho de cuidado não remunerado.  

Um dos pontos levantado por Samara, que também é citado no vídeo do humorista, é sobre como só conseguimos nos desenvolver e chegar a fase adulta porque temos uma cuidadora desde que nascemos, que na maioria das vezes são as mães e esse cuidado é naturalizado a ponto de não ser visto como uma forma de trabalho, que não é remunerado: 

“Silvia Federici [ativista feminista, filósofa, escritora e professora italiana] fala que isso não é amor, é trabalho. E esses dias, uma amiga minha, a Clara Saraiva, questionou essa frase e eu acho que ela foi muito feliz. Ela falou assim: é amor, mas é trabalho também! Há uma relação dialética nessa questão. Claro que existe amor, está tudo relacionado ali, mas um não anula o outro, um não é menor do que o outro nesse lugar, tem muito amor envolvido, mas também tem muito trabalho ali envolvido.” 

Charge “Invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres”, da artista Helô D’Angelo para o Brasil de fato | Reprodução: Instagram 

O trabalho da mulher no trabalho de cuidado pode alcançar uma jornada tripla, já que pode acontecer de forma remunerada dentro do seu ambiente de trabalho e de maneira não remunerada quando ela chega em casa e precisa cuidar de seu núcleo familiar/amoroso. 

O Enem 

Dados da Agência Gov apontam que dos 3,9 milhões de inscritos no exame, cerca de 71,9% realizaram o primeiro dia de prova, uma abstenção muito parecida à do ano passado. O Exame Nacional do Ensino Médio avalia como a qualidade do ensino-aprendizagem ofertado aos estudantes brasileiros que estão finalizando o ensino médio. É ainda uma avaliação crucial para o ingresso no ensino superior, tanto em instituições públicas quanto particulares. No ano passado também encontramos a palavra “desafio” no tema da redação, confira alguns dos temas de anos anteriores: 

  • Enem 2022: “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. 
  • Enem 2021: “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. 
  • Enem 2020: “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. 
  • Enem 2019: “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”. 
  • Enem 2018: “Manipulação do comportamento de usuário pelo controle de dados na internet” 

Os temas propostos nos últimos anos do Enem trazem a reflexão sobre assuntos que são importantes e acabam virando pauta das discussões de toda população, trazendo luz para tópicos que nem sempre são percebidos no dia a dia. Sobre a escolha do tema deste ano a professora de Jornalismo da FIAM FAAM, Maria Lucia da Silva, pontua:  

“É um desafio grande realizar alguns debates como esse, mas devemos enfrentar. Foi ótimo colocar esse tema no “agendamento” da juventude que fez o ENEM e na mídia. Acho importante o debate sobre temas sociais que são invisibilizados por sociedades como a brasileira. A naturalização do cuidado como uma obrigação feminina e não como trabalho deve ser combatida”. 

[1] Estudante do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM – Estagiária AICOM  

[2] Professor do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM, supervisor de estágios AICOM