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Perfil: Maria Lúcia da Silva

Professora de Jornalismo e Coordenadora do Núcleo de Estudos Étnicos-Raciais (NERA), do FIAM-FAAM Centro Universitário

Por Renato Felix Iwamoto [1]

Revisão por Guilherme Diniz Simões Moreira [2]

Edição por Safira Ferreira [3]

Supervisão de Prof. Wiliam Pianco [4] e Prof. Nicole Morihama [5]

Nosso encontro começa às onze horas e trinta minutos, quando Maria Lúcia havia me concedido um pouco de seu tempo após o término da aula. Ela se apresenta num turbante azul, vestindo uma blusa de mesmo tom, estampada com flores que lembram Manacás-da-serra. Atrás da armação curva dos óculos, um olhar desconfiado fita seu interlocutor. Maria lembra-me Albertina Sisulu, no fôlego crítico, e também Mamie Phipps Clark, na força criadora que dá conta de promover debates acerca das questões raciais sobre autoimagem e representação.

A capixaba, que chegou a São Paulo em 1991, havia se formado em janeiro do ano anterior. Ela cursou jornalismo na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde também foi incentivada por seus professores a seguir nas atividades de pesquisa dentro da instituição. Maria concluiu o mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, através do programa de incentivo à docência. Antes de terminar essa etapa, recebeu um convite para fazer parte do corpo docente da FAESA Centro Universitário, localizado em Vitória, Espírito Santo. Ela teve diversas passagens pelo mercado de trabalho, integrou assessorias de imprensa de governos municipais e estaduais e também foi consultora MEC/UNESCO.

De volta a São Paulo em 2012, Maria Lúcia conciliava trabalho e estudo. Foi quando precisou concluir a qualificação para o doutorado, tendo de abrir mão das instituições em que dava aulas para focar apenas no curso. Na Uninove foi onde ela defendeu a tese “Memória dos professores negros e negras da Unilab: Tecendo Saberes e Práxis Antirracista”, em 2016.

Nada mais emblemático do que iniciar um encontro, que mais parece uma aula em tom prosaico, com uma filha de Oxum exatamente no dia em que se completa 150 anos da Lei do Ventre Livre. Maria Lúcia instiga a refletir sobre um artigo feito por um professor da Universidade de Brasília (UNB), chamado Nelson Olokofá Inocêncio, intitulado “A trajetória de um intelectual negro na UNB”, referencial que também está presente em sua tese de doutorado. Ali ela apresenta a necessidade de compreender as nuances e os desafios que o negro enfrenta dentro das universidades públicas, debatendo sobre o ingresso e permanência de jovens negros nessas instituições.

Maria Lucia está na FIAM-FAAM desde 2012. Em 2016, ela criou o Núcleo de Estudos Étnicos-Raciais (NERA) em um esforço prático no caminho da produção de conhecimento e difusão da discussão racial no âmbito do ensino nacional. Esforço que faz jus ao teor da lei federal 10.639, de 2003, responsável pela implementação da obrigatoriedade de estudo da história e cultura afro-brasileira. A fim de dar conta de outras pautas que contemplam o respeito à diversidade, outros dois núcleos foram criados. O Núcleo de Estudos do Meio Ambiente (NEMA) e Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade (NUGE). Essas iniciativas seguem o mesmo rumo da luta pelo respeito, recomendado pelo coletivo de estudantes EnegreSer, que foi fundado por discentes da Universidade de Brasília (UNB), em meados dos anos 2000.

A professora fala sobre as mudanças no universo da comunicação e a transformação que se dá na tecnologia, mas a linguagem e as técnicas não sofreram tanta mudança. Nesse ponto, Maria acredita que a democratização alcançou certo nível de desenvolvimento, permitindo que o custo para a produção de uma matéria caísse substancialmente. No entanto, Maria Lucia aponta uma dinâmica interessante. Ela recorda que, nos anos 1990, nas salas de aula em que lecionava, percebia que o número de mulheres era quase igualmente proporcional ao dos homens, mas que ao final do curso essa lógica tendia para que houvesse mais homens concluindo a etapa. Essa diferença se alterou no final da década, onde ela conseguiu enxergar o número de cadeiras ocupadas – majoritariamente – por mulheres, especialmente nos cursos de Comunicação.        

Durante a leitura das 181 páginas da sua tese de doutorado, diversos fragmentos de autores que compõem o núcleo referencial do trabalho me chamaram atenção. Tomei a liberdade de compartilhar um desses trechos, cujo caráter explicativo a respeito da consciência de integração daqueles que constituem nossa sociedade, é cada vez mais expressivo conforme nos aproximamos um do outro. Como se pode notar, nessa passagem de Marcos Ferreira Santos em “As Filhas do Vento e a Ancestralidade Africana”: “A jornada interpretativa e, precisamente, esse argumento antropológico em que eu deixo o gabinete, a comodidade do lugar-comum, o meu lugar, o meu lócus, (lugar) e domus (lar) e, então, viajo. Vou contemplar essa paisagem desde o seu interior, vou dialogar com as pessoas concretas lá. E aí então, nessa explosão de sentidos, é que se dão as descobertas da constituição de nossa alteridade, me levam ao caminho de mim mesmo, ao mais específico de mim, numa reconstituição pessoal de sentidos.”

A sensibilidade vista nas páginas dessa obra acadêmica é trazida do convívio e observação dentro da sala de aula. Pois sendo professora, e como uma mulher negra, é sinalizado por sua voz que esse processo de debater os limites da representação negra nas instituições, possui reflexos imediatos diretamente ligados aos alunos, aqueles que ocuparão novos espaços em toda a sociedade nos anos que seguem. Por isso, um dos professores referidos na tese de Maria acerta ao dizer que há um preconceito por parte de outros colegas que exercem a mesma função; estereótipo reforçado ao suporem que as atividades sobre cultura afro-brasileira, elaboradas dentro de instituições de ensino, estariam por definição, atreladas aos cursos de Ciências Humanas/Licenciaturas. Isto é, deveríamos redirecionar todo o conceito de negritude que comporta um universo inexcedível a fim de tornarmo-nos capazes de enxergar a figura da mulher negra e do homem negro em todos os âmbitos imagináveis.

Ao fazer menção sobre a disseminação da informação promovida pela ascensão da internet no país, tendo como consequência real a ramificação do debate racial na população geral, sobretudo dentro da malha social que está fora do debate acadêmico e institucional, Maria Lucia recorda que há, desde muito, uma inspiração que almeja bem mais do que a liberdade: antes o direito à existência e o respeito à memória. Histórias daqueles que vieram antes e que servem de nutriente aos que são formados a cada dia, em cada sala de aula.

[1] Aluno do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM, estagiário AICOM

[2] Aluno do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM, estagiário AICOM

[3] Aluna do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM, estagiária AICOM

[4] Professor do curso de Jornalismo FMU/FIAM-FAAM, supervisor de estágios AICOM

[5] Professora e coordenadora do curso de Relações Públicas e Jornalismo FMU/FIAM-FAAM