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Quando os Quadrinhos Independentes encontram a Cultura Da Convergência

Lucas Goes

Maria Luiza Prado

Thayna Luany

Alunos de 3° semestre de Publicidade e Propaganda na FIAM-FAAM

Desde o boom dos quadrinhos brasileiros na década de 1980, passando pelos primórdios da internet com os blogs de quadrinhos e tirinhas, até quando eles começaram a tomar as redes sociais, a comunidade de quadrinhos independentes sempre esteve muito unida e pronta para experimentar novas linguagens. Logo, é fácil enxergar como esse nicho, em constante expansão, se adaptou tão bem à cultura da convergência e às possibilidades da cultura participativa expostas por Henry Jenkins – em seu livro “Cultura da Convergência”, publicado originalmente em 2006 –, soube utilizar a inteligência coletiva a seu favor.

            É possível observarmos, naquele primeiro momento, como quadrinistas independentes se adaptaram aos meios, organizando seus conteúdos em plataformas participativas para acontecer o que Pierre Levy denomina “inteligência coletiva” – por exemplo, através de lives, enquetes e eventos digitais, em que leitores e autores trocam conhecimentos.

            De acordo com Pierre Levy: “[…] não é mais um saber comum, pois doravante é impossível que um só ser humano, ou mesmo um grupo, domine todos os conhecimentos, todas as competências; é um saber coletivo por essência, impossível de reunir em uma só carne. No entanto, todos os saberes do intelectual coletivo exprimem devires singulares, e esse devires compõem mundos” (LÉVY, 2015, p. 183).

            Logo, os quadrinistas perceberam que a escolha de uma plataforma específica seria essencial para o sucesso de campanhas. Assim, descobriram nas plataformas de financiamento coletivo a oportunidade de obterem diferencias importantes para o alcance do produto (como a visibilidade do conteúdo abordado que, consequentemente, atrairá o público desejado que se identifica com o tema, e esse fator emocional é relevante na decisão de compra).

            Dessa forma, à medida que um quadrinista independente desenvolve seus projetos, ocupa o cargo de autor, desenhista, roteirista e editor simultaneamente, enfrenta o fato de que o mercado editorial nacional constantemente encontra dificuldades monetárias. E este é um fator que demanda dos autores a busca por assistência através do financiamento coletivo(ou crowdfunding), ao utilizarem plataformas onde o público pode patrocinar determinados projetos.

            Assim, ao apoiarem financeiramente as ideias abordadas e terem a possibilidade de fazer parte de algo maior, ou seja, da produção e de histórias ficcionais, isso potencializa o surgimento de fãs, sendo os consumidores apaixonados e fiéis pelo produto.

            Por meio da cultura participativa, o público assume uma posição decisiva, sendo ainda maior na divulgação, por exemplo, ao compartilhar e criar conteúdos sobre os quadrinhos em múltiplas plataformas e mídias. Dessa maneira, contribuindo para o alcance e para que o projeto atinja seus objetivos de financiamento e, consequentemente, de produção.

            Seguindo esse percurso, encontramos Gnut, quadrinho transmidiático de Paulo Crumbim, que é um exemplo de como a cultura da convergência estava sendo aplicada e pensada no período entre 2012 e 2015.

            Primeiro, Gnut foi concebido para veiculação em blog, em um modelo tradicional de HQ, mas foi se transformando em algo maior. Desenvolvendo-se para formato digital com a presença de gifs como quadros, um material impresso tradicional e 3D, acompanhado de músicas e com a intenção de ter um videogame. Assim, cada uma dessas plataformas contava uma parte da história que se unia em algo maior.

            Aqui, trata-se da visão de que se entregando o conteúdo e permitindo que as pessoas participem do processo, elas vão querer ver mais e fazê-lo acontecer. Crumbim percebeu isso, e a primeira parte, a digital, foi veiculada nas redes sociais e disponibilizada gratuitamente. Assim, o projeto final de Gnut juntou fãs e saiu “do papel” através de crowdfunding.

            É por isso que, embora a Constituição de 1988 defina que, “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras […]” (CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, 1988: Art. 5°, XVII), muitos artistas distribuem digitalmente suas criações nas redes, sem qualquer forma de monetização, e permitem o compartilhamento com o devido crédito ao autor, o que concede ao público propagar a mídia ao opinar a respeito de uma fanart (arte de fã) ou compartilhando comics nas redes sociais, para gerar um maior reconhecimento através da divulgação de determinadas obras, e agregar maior visibilidade a esse mercado e seus autores.

            No livro de comentários sobre a produção de Gnut, Crumbim fala sobre essa percepção da propagabilidade e como esta é um viés para projetos nessa nova época: “Gosto de fazer um paralelo da webcomic grátis com uma escultura em praça pública, pela exposição a que ela está submetida, esteja ela em avenidas de tráfego intenso ou em uma rua pouco movimentada, onde quem por ali passa/acessa, pode olhar/ler e, se desejar, registrar o momento/compartilhar. Sem dúvida essas ‘esculturas em praça pública digital’ são extremamente saudáveis para um mercado ainda em desenvolvimento”(CRUMBIM, 2015, p.14).

            Foi com esse mesmo modo de pensar que o quadrinista André Valente desenvolveu A ilha de São Galalau. A obra foi um “HQ/ RPG experimental em câmera lenta”, como ele mesmo denominou na data da primeira veiculação, de forma gratuita, no Twitter no ano de 2017. O quadrinho que contava a história de um esqueleto em uma ilha deserta foi feito em formato gráfico semelhante ao da tela do Gameboy da Nintendo, e cada ação do personagem era decidida pelo público, como se estivessem jogando o quadrinho de forma cooperativa.

            Ações como explorar a ilha, encontrar a resolução de puzzles e até dar nome aos personagens eram feitas por comentários e enquetes na thread onde eram tweetadas as páginas. Muitas vezes, cada caminho tomado era único e, em outros momentos, poderiam ser revisitados, exatamente como um videogame. Certos elementos integravam parte da história inesperadamente, como chamar dois dos personagens de “Eduardo e Monica”, em referência à conhecida música da Legião Urbana (o que não estava na narrativa base da HQ).

            Nesses dois exemplos encontramos aplicabilidades da cultura participativa e de produção transmidiática que Jenkins cita em A Cultura da Convergência (2006). Contudo, são exemplos onde o produto final foi concebido com essa finalidade. Há, também, quadrinistas independentes que no primeiro momento não estão criando com esse propósito, mas foram abarcados por esse meio.

            Em 2019, João Silva, ou Silvazuão, seu nick no twitter, publicou os primeiros capítulos de Hq de Briga na rede social. O quadrinho que conta a história de um personagem que se chama Protagonista, entrando num torneio de artes marciais em busca de ter sua vingança contra o Antagonista, brinca com referencias pop, a Jornada do Herói e diversas estruturas “clichês” de filmes e animações de luta. A história tomou a atenção do público pela inteligência e ironia contidas na obra. Logo, o público passou a fazer seus próprios brigasonas (como chamaram os personagens criados para esse mundo de Silva) e releituras de tirinhas que o autor publicava.

            Algo que poderia ter passado apenas como uma reação do público para Silva, não se limitou a isso. O autor compreendeu o meio em que estava, e republicou as releituras em tweets, incentivandocom comentários e elogios.Alguns dos brigasonas criados pelo público foram incorporados por Silva nos capítulos seguintes, como figurantes, fazendo o público se sentir como parte física da obra ainda em andamento.

            Em sequência ao seu modo de ver a participação do público como parte do seu trabalho, João Silva lançou, no final de 2020, Pelas Ruas de Açucena, uma história na qual as crianças de uma cidade interiorana brasileira desenvolvem poderes sobrenaturais. Em lives na Twitch (comumente feitas por Silva, tanto para conversar com o público quanto para jogar), ele pratica encontros onde, conforme as sugestões recebidas, cria cada um dos personagens dessa cidade fictícia. Ou seja, a diversidade dessa história é proporcionada pela diversidade do público que o acompanha, fazendo dele seus cocriadores.

            Valeria citar como exemplos Monge Han com sua HQ Mondolís, que também produz páginas de seu trabalho em lives da Twitch, conversando com o público, mostrando e trazendo-o para seu processo criativo. E Gabriel Dantas, que responde a perguntas no Instagram e Twitter (falando desde seu trabalho até sobre questões amorosas do público) com quadrinhos que faz exclusivamente para elas.

            A revolução da tecnologia e dos meios de comunicação estabeleceu uma nova relação de poder entre produtor e consumidor, através da cultura da convergência. Agora o mesmo poder de produção é compartilhado e intensificado em processos relevantes para que um produto seja divulgado e alcance o seu respectivo público-alvo. O processo torna-se um trabalho em conjunto que agrega valor para ambos, e por isso é fundamental considerar esse aspecto em todos os pontos de divulgação da campanha.

            Há ainda centenas de quadrinistas independentes, muitos destes brasileiros, que, dentro do panorama da cultura da convergência e da cultura participativa, encontraram formas de expandir e criar novas formas de utilizar os meios disponíveis. Eles servem de exemplos práticos das possibilidades e portas que se abrem, e ainda podem se abrir, tanto paraessa como para outras mídias.

Referências

ALMEIDA, Victor José Pinto de. Cartase e Quadrinhos Independentes como Opção para o Mercado Editorial. São Paulo, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://www2.eca.usp.br/anais2ajornada/anais2asjornadas/anais/13%20-%20ARTIGO%20-%20VICTOR%20JOSE%20PINTO%20DE%20ALMEIDA%20-%20HQ%20E%20ARTE.pdf >

CARTASE – GNUT. Disponível em: < https://www.catarse.me/gnut >

CRUMBIM, Paulo. Gnut, 2012. Disponível em: <http://www.gnutcomics.com/2012/11 >

CRUMBIM, Paulo. Gnut: Making of de produção e algumas palavras. São Paulo: sem editora, 2015

DANTAS, Gabriel. Bifedeunicornio. Instagram. Disponível em: <https://www.instagram.com/bifedeunicornio/?hl=pt-br >

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência, trad. Susana Alexandria. São Paulo: Editora Aleph, (2006) 2013.

JENKINS, Henry; FORD, Sam; GREEN, Joshua. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Editora Aleph, 2015.

MONGEHAN. Twitch. Disponível em: < https://www.twitch.tv/mongehan >

RIVERO, Renan Bertrand Campos. Autopublicação: Observações sobre os quadrinhos independentes brasileiros. Repositório Aberto U. Porto, Set de 2020. Disponivel em: < https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/130673  >

SANTOS, LEANDRO SAIONETI. Multidão Gráfica: o financiamento coletivo na popularização dos quadrinhos nacionais independentes. Cellac Usp, 2020. Disponivel em: <http://celacc.eca.usp.br/sites/default/files/media/tcc/2021/01/tcc_-_leandro_saioneti_santos_0.pdf >

SILVA, João. HQ de Briga. Twitter, 2019. Disponível em: <https://twitter.com/silvazuao/status/1302990170594082818 >

SILVA, João. Pelas Ruas de Açucena. Twitter, 2020. Disponível VALENTE, André. A Ilha de São Galalau. Twitter, 2017. Disponível em: <https://twitter.com/andrevalente/status/912412304293158912 >