Amor e Covid

O amor em tempos de Covid-19

Um vírus de pujança temível e uma sociedade aflita imposta ao distanciamento. Casais afastados, pares divididos, parceiros distantes e solitários ainda mais solitários. Amor e Coronavírus no mesmo contexto torna irresistível não cair na tentação de pronunciar o infame trocadilho “Amor em Tempos de ‘Corona’”, referência à magistral obra vencedora do Nobel de literatura: “O Amor em Tempos de Cólera”, do colombiano Gabriel Garcia Márquez. 

Na história ficcional, o romance de Florentino e Firmina é o norte da trama. Florentino é um rapaz pobre e Firmina uma moça de família rica, que desaprova o amor e afastam o casal. Nesse afastamento o par troca mensagens à distância por meio de um telégrafo ao longo de um extenso período de tempo, tudo isso no desejo de ainda manter o grande amor que existia entre os dois. Essa história de amor estabelece um paralelo com a contemporaneidade, visto que vivemos um tempo de um afastamento entre casais do mundo todo, que se veem obrigados a relacionar-se a distância em razão de uma patologia viral poderosa. No romance a epidemia em evidência era a cólera, causada por uma bactéria e que atinge principalmente o sistema digestivo. porém atualmente o mal que desperta o pavor na humanidade é o Sars-CoV-2, vírus capaz de provocar uma severa síndrome pulmonar, levando uma parcela considerável dos acometidos à morte. 

A Receita do Amor

Era uma tarde de dezembro, portadora de um sol ardente que invadia a casa da família Ramos em mais um almoço de Natal reunidos. Apesar de toda tradição ali existente, com todos da família sempre presentes, para alguém em específico aquilo tudo era totalmente novo. Ricardo Borba, filho mais novo de Francisco Borba, o Seu Chico, comemorava o terceiro ano de namoro com a mais velha filha de Dona Cristina Ramos e era a primeira vez que ele conseguia passar o feriado santo com sua namorada. O que ninguém tinha consciência ali era que Virgínia e Ricardo estavam se vendo pela última vez antes de um severo período de isolamento que ainda perdura, o qual sua previsão de término é nebulosa de enxergar. “Nós passamos o feriado do Natal juntos e logo depois eu fui passar o ano novo com minha família em Sobral (CE) porque logo começariam minhas aulas e eu não via meus pais há muito tempo”, relata Ricardo, que passou os últimos dias das férias da faculdade com seus pais antes de voltar a capital paulista para concluir seu último ano de biologia. Virgínia, 27 anos, mora há um ano com seu parceiro e relembra a conexão musical que uniu os dois: “nos conhecemos por conta de uma rede social de música, o Tastebuds, começamos a conversar porque por conta da nossa paixão Metal e cultura medieval” e lamenta a disseminação do vírus que mantem seu namorado longe desde o fim do ano: “ele voltaria no começo de fevereiro pra cá, mas logo quando iniciou os casos lá no nordeste a mãe dele se infectou e ele ficou preso por lá” e completa “a mãe dele conseguiu se curar graças a Deus, mas ele optou por não sair de lá por precaução. Eu tenho problemas de coração e resolvemos nos manter isolados para que não houvesse risco de contágio”. 

O estudante de biologia confessa que o período de quarentena tem sido muito difícil, os dois estavam a todo momento juntos e estabeleceram um companheirismo sólido durante os três anos de relacionamento. O par estava planejando casamento para o ano que vem, mas infelizmente o sonho terá de esperar mais um pouco por conta de tudo que está ocorrendo mundialmente. A comunicação do casal é frequente, todos os dias compartilham seus dias através de chamada de vídeo: “costumávamos sempre fazer comida juntos e então resolvemos separar o horário da janta para conversar enquanto cozinhamos”, explica sorridente o cearense, que voltaria a sua cidade natal após o término dos estudos mas ter encontrado Virgínia o convenceu a ficar na terra da garoa. Segundo relatos do casal, a relação à distância tem, surpreendentemente, aproximado mais ainda os dois: “parece que a solidão e o tempo longe servem para reforçar ainda mais a falta que o outro faz”, demonstra Ricardo, finalizando de forma saudosa: “o que eu mais quero é que essa pandemia acabe logo pra poder abraçar ela novamente”.

Match com a Solidão

O isolamento social adquire um tom irônico sob a perspectiva pandêmica. Embora a sociedade se encontre presa aos seus lares, convivendo e aproveitando as vezes da própria companhia somente pela primeira vez na vida durante um longo período de tempo, o mundo dos relacionamentos e do amor propriamente dito ainda reserva a todos nós um traço de solidão inescapável com alguma frequência.

Através de dados obtidos a partir de um mapeamento das intenções de usuários do aplicativo de relacionamento Tinder realizamos um panorama de como se comporta a vida sentimental de pessoas solteiras em meio a epidemia global da Covid-19 e consequentemente a quarentena. Ao todo 20 pessoas foram entrevistadas, 10 homens e mulheres heterossexuais e também 10 homens e mulheres homossexuais. 

Inicialmente, os números que logo ganham destaque na pesquisa são que 40% do total de entrevistados estão utilizando o app pela primeira vez, 30% utilizam com frequência e 20% apenas já realizou um encontro por intermédio da ferramenta; em resposta a esse fato, grande parte dos entrevistados confessa precariedade na oferta pessoas que sejam atraentes mas ao mesmo tempo interessantes: “a maioria dos caras são escrotos. Já chegam em você de uma forma bruta e sem educação. Uso o aplicativo na esperança de achar alguém legal, mas ultimamente tem sido bem difícil”, confessa Bruna, estudante de psicologia e usuária do Tinder há 3 meses. Sob o ponto de vista físico, 85% acreditam que os perfis apresentam fotos de pessoas atraentes, enquanto 10 apenas apontam que existem usuários interessantes além da beleza. 

O dado mais relevante de toda a análise recai sobre o fato de que 70% usam o aplicativos para satisfazer sua autoestima e, desses, 9 em cada 10 pessoas utilizam o programa apenas para receber curtidas e elogios: “eu já passei do momento em que procuro algo aqui, agora só fico vendo quem me curtiu e tal. Não tenho paciência”, aponta Kléber, engenheiro de 30 anos, que acredita que isso é uma maneira de ainda se sentir visto e cobiçado, uma vez que as noites de balada deram lugar a filmes e séries em casa: “sinto falta das noitadas, flertar com os ‘boys’ e beijar. É muito ruim ficar em casa, ainda mais pra mim que sou tão ativo”.

Sob o prisma do isolamento, 60% dos usuários voltaram a usar o app por causa da quarentena e 80% acredita que é uma boa distração. A solidão é algo presente na vida de 70% dos entrevistados e três em cada quatro já sofreu algum distúrbio psicológico como depressão e ansiedade. Apenas um entrevistado mantém um relacionamento e um perfil na rede simultaneamente: “Tô de saco cheio da minha esposa. É muito ‘mimimi’, muita cobrança. E agora juntos o tempo todo só piorou as coisas. Criei uma conta para conversar com outras mulheres, vê se eu encontro alguém pra um lance depois que a quarentena acabar”, justifica Danilo*, que planeja o divórcio, afirma também que tentará uma nova vida amorosa depois que o isolamento acabar.

Uma prioridade constante na vida humana no tocante ao que nos desperta a alegria, o “ser notado” adquire um poder muito maior neste cenário viral. As pessoas em casa, detém de maior tempo para refletir sobre a vida e são mais propensas a sofrer da falta de serem admirados, queridos. Mas isso pode não se manifestar na vontade explícita de se relacionar, mas no anseio que as outras pessoas te desejam, sem relação alguma envolvida. Facilitado pelos aplicativos de relacionamento, o traço da pós-modernidade mais patente salta aos olhos da sociedade nos fazendo questionar a forma como as relações humanas estão tomando novas formas e a efemeridade do prazer imediato impera sobre nosso psiquismo: “a mente humana funciona de maneira a incentivar atitudes simples – a curtida – que geram grande recompensa de dopamina e serotonina – neurotransmissores do prazer – e deixar de lado aquilo que exige maior trabalho e nos recompensa de maneira reduzida ou de um jeito gradual” infere o Dr. Horácio Lozza, psiquiatra e psicólogo que ainda faz a seguinte reflexão: “é necessário uma reeducação da sociedade quanto aos usos da internet nas relações amorosas. Pode-se muito bem nutrir laços e amores duradouros na rede, claro, mas a tendência é que à medida que o ato natural de conquista vai perdendo seu valor frente ao egocentrismo virtual, a comunicação humana torna-se deficiente. Meu receio é que a quarentena desperte o lado individual da mente ao ponto de se evitar cada vez mais a interação social”.

O Cavalheiro Quadrado e a Dama Fogosa

O sorriso pode ser registrado em uma foto, o olhar pode atingir o coração através de uma chamada de vídeo e as palavras conseguem navegar pela rede ou telefone até os ouvidos do nosso receptor, mas o toque continua soberano como algo que não pode ser reproduzido virtualmente. O sexo, embora tenham sido trabalhadas maneiras de ser praticado “virtualmente”, ainda não é possível ser praticado à distância, somente simulado. Desde as cartas trocando juras e fantasias eróticas até o sexting, a vídeo-chamada, ou até mesmo, mais recentemente, os “nudes”, a humanidade busca caminhos para superar a distância na hora em que a excitação chega. E com a chegada de um evento de proporções globais capaz de confinar as pessoas em isolamento, esse impulso do sexo distante ganha força.

Félix D’Ávila, 45 anos, recém-divorciado após um casamento 10 anos que resultou em dois filhos, vive um momento diferente em sua vida. Depois de muito tempo se relacionando com uma mesma mulher, agora busca aproveitar a vida de solteiro, mas sem negar o desejo de novamente estabelecer laços com outra pessoa. Através da internet conheceu uma moça 15 anos mais nova e começou um affair: “nunca pensei que fosse conhecer alguém pela internet, sempre fui meio cético em relação a isso. Mas parece que está dando certo, o único problema é a parte do sexo. Quando conseguíamos nos encontrar era tudo ótimo, mas depois do início da quarentena complicou”, explica o empresário aflito, pois a mulher detém de uma libido inesgotável e ele não dá conta de satisfazer as vontades “virtuais” dela: “vive me pedindo pra ligar a câmera, mandar fotos e tudo mais. Eu não levo jeito pra isso, fico com muita vergonha”. Curitibano radicado em São Paulo, aos poucos vai aprendendo os segredos da relação virtual e finaliza: “sou um homem à moda antiga, mas talvez essa pandemia toda sirva para me tornar menos ‘quadradão’ (risos)”

Cair na rotina é o problema de todo casal, mas como evitar essa questão em meio uma pandemia. Muito embora, ter hábitos bem estabelecidos em isolamento social podem salvar relações. Além da carga do estresse e do confinamento, a falta de compromisso com atividades comuns da casa, pode gerar atritos a longo prazo. 

A rotina, se bem trabalhada, ajuda a mente a se sentir útil, entre as incertezas do isolamento os casais se deparam com a dificuldade do afastamento brusco ou a proximidade extrema. Para viver neste momento de restrição domiciliar é necessário equilíbrio e a implementação de hábitos saudáveis, assim como ter momentos de respiro voltados para se conhecer e descobrir ainda mais sobre os costumes do outro.

A sexóloga Cátia Damasceno, relatou a verdade sobre a vida dos casais na quarentena através de seu canal no Youtube, no qual entrevistou Nah Cardoso e Taciele Alcolea – ambas influenciadoras digitais –, a primeira dica dada pela sexóloga na discussão é fazer acordos de convivência familiar e todos saberem respeitar e dividir as tarefas. “Saber distinguir a intimidade da sexualidade é o que muitas vezes as pessoas não entendem”, afirma Cátia, “a intimidade é você conhecer, respeitar o limite do outro, se dispor a fazer alguma coisa que você não gostaria, mas pelo bem do relacionamento, você acaba realizando”.