A tecnologia e o aprimoramento das técnicas de conexão e convívio social crescem exponencialmente, a ciência se vê cada vez mais poderosa e o conhecimento é tomado como a luz do amanhã por todo o globo (com a exceção da população insistente na quimera terraplanista), a indústria bélica é recipiente de um poder capaz de destruir o planeta por mais de uma vez e o mundo detém de uma rede de informação com amplitude gigantesca. Ainda assim, um organismo microscópico e acelular, com um poder de propagação assustador, conseguiu sucumbir a Terra ao medo e ao isolamento social. O vírus Sars-CoV-2, o famigerado “Coronavírus”, registra quase 3 milhões de casos confirmados e cerca de 210 mil mortos no mundo todo no fim de abril, segundo dados da BBC.
Em resposta à pandemia, a população mundial se vê num cenário de quarentena, mantendo a população abrigada em suas casas a espera da diminuição dos casos. Devido a fase inflamatória do vírus se localizar no pulmão, pessoas com problemas respiratórios e detentores de patologias crônica configuram o foco da mortalidade e assim a prioridade em manter longe do risco de contaminação. Logo, levando em conta a propensão de enfermidades desses tipos na fase mais avançada da vida, a predominância desse isolamento imposto está na faixa de idade representativa do maior grupo de risco: os idosos. A tecnologia e a internet têm servido de alento a terceira idade e representa uma maneira de aliviar a distância em meio a pandemia.
Está nas cartas
Contemporâneos da era de ouro do rádio e testemunhas do desenvolvimento televisivo, pessoas na melhor idade enfrentam um novo e diferente desafio: lidar com a convergência midiática em tempos de epidemia global. Ao momento em que, privados do convívio social e de boa parte de suas famílias, precisam estabelecer suas conexões por novos meios de comunicação: “eu nunca pensei que fosse precisar usar internet, celular e essas coisas. Sempre achei difícil e ainda acho, mas preciso conversar com meus filhos e ver meus netinhos”, confessa a nostálgica Vera Tavares, ex-comissária de bordo que relembra dos tempos em que exerceu sua função na extinta Varig. “Naquela época era tudo diferente. As relações, o jeito de se juntar e aproveitar o tempo. Não tinha celular, mas por telefone a gente se ajeitava”, lembra a ex-comissária.
Vera, 66 anos, hoje uma astróloga por hobby que lê tarot para as amigas reclama não poder mais fazer isso com tanta frequência devido a quarentena. Suas amigas, segundo ela, “pararam no tempo”, não utilizam internet quanto mais celular. Questionada sobre o que as cartas revelam sobre o futuro do planeta, da humanidade e da luta contra o vírus ela revela: “são tempos difíceis, vai demorar um pouco pra nos livrarmos de tudo isso, mas iremos sair dessa. No fim acredito que, de uma forma, renovados. Todas as vezes que eu busquei resposta no tarot a carta da morte surgiu pra mim. Ao contrário do que a maioria acredita a morte não representa o fim, mas um recomeço, o início de um novo ciclo. A humanidade precisa disso”.
Verinha, como é conhecida por todos, esbanja um sorriso iluminado e encara a quarentena com bom humor. Conta que começou a usar as redes pouco antes dos primeiros casos do vírus, mas que se aprofundou no uso com o andar do isolamento: “ajuda bastante. Converso com as pessoas, vejo meus netos por vídeo e aproveito pra ver umas receitas também. Quem se dá bem nessa parte é o Lucas (risos)”. Lucas Tavares, filho de Vera, tem sido o herói dos últimos dias na casa da família Tavares, indo ao supermercado e fazendo tudo o que os pais, devido a idade, estão impedidos de fazer. “Estou passando a quarentena com eles – os pais – pra que não precisem sair, são muito ativos e tenho receio deles ficarem andando por aí e contraindo a doença”, explica Lucas. Segundo o filho, o pai é totalmente avesso a qualquer tecnologia moderna e adora ler. Já a mãe não sai da internet e a todo tempo arruma algo para fazer: “tem sido bom pra ela essa relação com a tecnologia. Acredito que se não tivesse essa alternativa para se comunicar o isolamento seria sentido com mais intensidade por ela. Mas minha mãe vem se adaptando bem a essa nova rotina”. Porém, mesmo com a facilidade de informação possibilitada pela internet, Vera reclama: “dói muito”, a saudade dos netos se intensifica cada vez mais, mesmo conversando com eles pela telinha.
Queimando a Língua
Nunca diga: dessa água não beberei. A vida, permeada pelo seu caos tecedor de histórias aleatórias, uma hora ou outra vai acabar fazendo todos nós, em algum momento, revermos nossos conceitos e quebrarmos nossos mais sólidos paradigmas: “meu pai era insuportável, não podia ver eu e minha mãe no celular por algum tempo que já reclamava. Dizia que parecíamos hipnotizados”, conta Vinícius, filho de um senhor de aparência jovial e barba branca que era um dos maiores críticos da internet e suas ferramentas. Dizia a todo tempo que a internet era “a maldição da humanidade”.
Seu Luiz, 65 anos, mas extremamente ativo e dono de uma rotina cheia: acorda às 4 da manhã de domingo a domingo para trabalhar com sua van transportando cargas. Figura antiquada, mas que aos poucos mostra que essa imagem é forçada, apenas para manter a sisudez e não dar o braço a torcer para o fato de que antigamente nem tudo era melhor: “eu comprei esse celular porque o meu antigo já não funcionava direito. Aprendi quase tudo sozinho, fui fuçando… Algumas coisas eu me confundia e perguntava pro meu filho, que não tem paciência nenhuma em explicar nada”, explica Luiz. “O que eu mais uso é o Youtube”, diz ele. Entre suas preferências o conteúdo predominante são documentários, mas outras coisas também ganham sua atenção. “Ele tem um gosto meio bizarro. Fica assistindo uns vídeos sobre tratores e coisas de agricultura”, lembra o filho. Seus gostos remontam a sua origem. Nascido em Barra Bonita, interior de São Paulo, e vivendo parte de sua infância no Estado do Paraná, Luiz Antônio, o Neném, como é chamado pelos irmãos, teve uma relação muito próxima com a vida sertaneja, trabalhando na roça. “Outro dia meu pai ficou absolutamente o dia inteiro no quintal, vendo vídeos de música caipira, tomando uma cerveja e comendo azeitona. Há muito tempo não via ele desfrutando de um tempo livre dessa maneira. O período de descanso dele em casa era só almoçar, dormir e acompanhar o noticiário. Agora, sem poder trabalhar, ele usa a internet pra ler notícias, assistir coisas engraçadas, ouvir música. Descobrir a internet nesse tempo de isolamento foi especial. Meu pai redescobriu uma felicidade que ele não sabia que existia”, interpreta Vinícius, jornalista, 26 anos, que também se orgulha do pai ser sagaz o suficiente em não cair em notícias falsas, um mal predominante nas redes.
Por outro lado, como nem tudo são flores, a esposa de Seu Luiz demonstra certa irritação com o novo gosto do marido: “ele me enchia o saco antes por causa do barulho do celular, agora escuta isso – vídeos – no último volume. Não dá mais pra assistir a novela na sala”. Dona Sandra, ainda aponta uma outra frustração com seu esposo internauta. “Agora deu pra ficar assistindo Chaves na hora do almoço. Coloca o celular em cima da mesa e fica lá assistindo. Falo pra ele que hora do almoço é pra comer, ou ele acha que vai comer celular?”, reclama a esposa. Porém, embora se sinta irritada as vezes, Sandra fica feliz com o novo hobby do marido, que, questionado sobre a mudança de ponto de vista sobre o uso da internet, arremata com uma frase do filme Um Caipira em Bariloche, onde Amácio Mazzaropi, interpretando o Jeca Polidoro, tira um lembrete escrito num papel de dentro de sua bota, cujo recado diz: “preciso me atualizar nas novas tecnologias”.
Novo Mundo
Seja em períodos de necessidade ou por próprio interesse por novidade, a investida dos mais velhos na tecnologia é um processo que pode trazer ótimos insumos à vida na terceira idade, conforme aponta a médica geriatra, Rosana Hasegawa. “Toda descoberta é algo bom pra saúde. Seja um bebê experimentando um sabor novo ou um idoso que começou a fazer aulas de dança. A reação é a mesma. O ser humano tem sede por descoberta, não seria diferente nas idades mais avançadas”, diz a médica. E completa sobre o benefício nas relações interpessoais: “novas maneiras de se comunicar servem de incentivo a interação. Um idoso quando começa usar internet é muito mais propenso a reencontrar pessoas que se afastaram de seu convívio do que aqueles que não possuem a ferramenta. E uma das coisas que mais trazem bem-estar na terceira idade é recuperar laços, pois ativa a memória afetiva, provocando felicidade”.
Por outro lado, existem revezes no uso da internet pelos idosos e isso recai muito sobre o sistema cognitivo. “A mente humana, independente da fase da vida, já detém de um filtro que nos predispõe a valorizar informações que corroboram com nossas crenças, a fim de evitar muito esforço cognitivo. Na fase mais avançada da vida, nossa resistência a informações dissonantes ao que acreditamos aumenta e imerso em um cenário onde a oferta de informação é muito intensa – a internet – os idosos são propensos a acreditar em qualquer coisa que eles gostariam que fosse verdade”, ressalta a geriatra. Segundo a médica, “dessa maneira, um idoso possui um perigo maior de ser vítima de golpes ou experimentar remédios e terapias caseiras que possam ser perigosas a sua saúde”.
Sob um aspecto geral, a relação idoso/tecnologia é um processo com grande poder de mudança, capaz de alterar a maneira como uma pessoa encara a quarentena ou até mesmo auxiliar na vida como um todo. Porém, como toda transformação abrupta, a tecnologia, com destaque à internet, é capaz de promover alguns problemas quando a vulnerabilidade idosa vem à tona.
A necessidade obriga…
Segundo a dona de casa aposentada, Joana Maria da Silva, de 72 anos, residente na zona Sul de São Paulo, que cursou o ensino fundamental I (4º série) e principal cuidadora de seu marido Raimundo Nonato da Silva, de 75 anos, paciente do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) há 3 anos, a instituição conta com um atendimento on-line diferenciado chamado Alô Enfermeiro, disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana. Tal serviço não havia sido utilizado por ela até poucas semanas, quando surgiu a pandemia e a orientação do isolamento social.
Sendo assim, algumas consultas e procedimentos foram desmarcados e como no momento sua filha está de resguardo pelo nascimento de seu primeiro neto, viu-se obrigada a enfrentar suas dificuldades e experimentar o que a tecnologia tem a oferecer, auxiliando e facilitando a rotina de quem nesse momento tanto necessita. Conta ainda que apesar das dificuldades que encontra, principalmente com as consultas virtuais, os profissionais são muito disponíveis e pacientes; percebe que aos poucos as coisas estão se encaixando.
Independência e qualidade de vida
O casal Júlio Sanches (69 anos), mecânico, e Marlene Santos Sanches (70 anos), professora aposentada, residentes na região do ABC-SP, contam que sempre foram ativos, porém, com a pandemia, tinham por vezes a necessidade de solicitar ajuda aos filhos para que trouxessem ou realizassem compras (mercado ou farmácia) on-line para eles e até mesmo pagamento de contas pelo banco digital, pois até então faziam essa atividade nas lotéricas.
Como sempre gostaram de desafios, solicitaram aos filhos o passo-a-passo para que pudessem ter mais independência e qualidade de vida: “porque com isso já mexíamos, aí foi mais fácil do que pensávamos“, relata Dona Marlene. “Hoje chamamos até o Ifood”, conta sorridente seu Júlio. No momento de dúvida, eles recorrem aos filhos pelo Whatsapp.
Não tenho idade para isso
O servente de pedreiro aposentado, Jair Gonçalves Filho (76 anos), analfabeto, residente na zona sul de SP, morava sozinho por opção, após a viuvez há 4 anos. Há três meses uma de suas 3 filhas, Wanda, divorciou-se e voltou a morar com ele. Diz que, por mais que as filhas expliquem, não consegue utilizar nenhuma das funções do celular: “telefone é para falar, não para escrever “, diz de forma direta.
Nesse momento de pandemia, prefere que a filha resolva o que for necessário. Segundo ele, não tem vontade de aprender e acredita que o que tinha para fazer já foi feito: “Não tenho mais idade pra isso”, finaliza.
Em suma, o novo cenário da comunicação na terceira idade em plena quarentena evidencia a necessidade do ser humano, de qualquer idade, em busca novos meios de se aproximar dos seus semelhantes. Como todo processo comunicativo, a internet possui algumas dificuldades, impossibilitando até que alguns idosos se sintam incentivados a usá-la. Porém, a mobilização de boa parte dos idosos com a tecnologia é evidente e demonstra uma quebra de paradigma, no sentido de que tecnologia e terceira idade combinam muito bem e podem trazer insumos positivos na vida longeva.