O surto da Covid-19, que se originou em dezembro na província de Wuhan, na China, impactou diversas esferas da sociedade ocidental. Relatos de vítimas de preconceito, por terem descendência oriental, surgiram no Brasil, país em que 0,47% da população se declara amarela, segundo IBGE (2015). No início deste ano, o caso de preconceito ocorrido em um condomínio comercial localizado na Avenida Luiz Carlos Berrini, em São Paulo, exemplificou mais esse cenário, que tem aflorado na sociedade de diversos países pelo mundo. A administração do edifício emitiu uma nota com uma série de normas a serem seguidas pelos trabalhadores chineses, entre elas, o uso exclusivo do elevador privativo, além de máscaras e álcool em gel.
A justificativa da gerência era a de zelar pela saúde coletiva, ainda que no período não houvesse nenhum caso confirmado no Brasil. Posteriormente, o texto foi retirado e substituído por outro, relatando que: “Apesar de estar instalada no prédio uma empresa em que a matriz seja chinesa, e haver alguns funcionários de origem chinesa, a empresa segue todas as recomendações da OMS”, e constatando não haver funcionários recém-chegados da China circulando pelo edifício.
Outro episódio ocorreu com Marie Okabayashi, de 23 anos. Ela relatou nas redes sociais ter sido vítima de preconceito por conta de sua descendência. O caso aconteceu no metrô do Rio de Janeiro em 31 de janeiro, quando uma idosa chamou a jovem universitária de “chinesa porca”, além de dirigir insultos a outras etnias. Parte dessas ofensas foi gravada dentro do vagão e o vídeo viralizou na internet.
A estudante Fernanda Yumi Tagashira, de 19 anos, passou por situação semelhante em março. No novo emprego que deveria ser motivo de conquista, se configurou uma grande frustração. Nos primeiros dias, a jovem relatou ter sofrido forte preconceito devido sua descendência japonesa. “Foi no meu ambiente de trabalho, borrifaram álcool no meu rosto enquanto gritavam ‘coronavírus’”, afirmou a estudante. Segundo Fernanda, a situação foi resolvida, mas os impactos do preconceito ainda estão presentes no cotidiano dela: “Continuo trabalhando no mesmo lugar e as pessoas tiram ‘sarro’ de mim pelas costas, o que não me surpreende, mas é de fato decepcionante”.
O caso relatado pela jovem nas redes sociais chegou ao conhecimento da gerência, que anunciou que desligaria da empresa a responsável pelos ataques, além de auxiliar a estudante em um processo por injúria racial. Segundo Yumi, os superiores deixaram claro que os atos da agressora eram de cunho racista, sendo classificados como uma atitude criminosa, e prestaram o devido apoio à vítima que, após pedidos de desculpas, optou por não dar continuidade a denúncia.
Nas Redes Sociais
As redes sociais amplificaram o alcance dos relatos de discriminação por causa da pandemia. No final de janeiro, surgiu na França a hashtag #JeNeSuisPasUnVirus, utilizada pelos franco-asiáticos como forma de protesto e para denunciar esses casos. Os compartilhamentos geraram mobilizações em diversas línguas, na Espanha, por exemplo, é grafada como #YoNoSoyUnVirus; nos EUA, #IAmNotAVirus e pelos internautas brasileiros, #NãoSouUmVirus.
Em ação contra o racismo, devido o novo coronavírus, a Organização das Nações Unidas (ONU) postou em suas redes sociais a campanha #StandUp4HumanRights. Nas postagens a organização alega compreender o temor causado pela pandemia, mas isso não pode servir de justificativa para ferir os direitos humanos. Há algum tempo o órgão já vem pedindo ênfase no combate a sinofobia e outras vertentes de xenofobia. A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, já havia solicitado que países aliados não medissem esforços para reverter este cenário.
Em 05 de abril, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, satirizou a fonética dos chineses e insinuou supostos interesses da China com a pandemia. A Embaixada da China no Brasil se manifestou em nota no dia seguinte, repudiando a ação e alegando que tais declarações são “completamente absurdas e desprezíveis, que têm forte cunho racista e objetivos indizíveis, tendo causado influências negativas no desenvolvimento saudável das relações bilaterais China-Brasil”.
Como forma de se mobilizar contra o desconhecimento disseminado nas redes sociais que, potencialmente, fomenta o preconceito, a Embaixada da República Popular da China no Brasil lançou um documento intitulado “12 rumores infundados sobre a China durante a epidemia de Covid-19”. Na introdução, a Embaixada alega refutar com os conhecimentos científicos e informações disponíveis até o momento para desmistificar algumas alegações que circulam nas redes sociais, como a suposição do vírus ter se originado em laboratório e sobre a possibilidade de um interesse comercial.
Contra a discriminação
O Estado brasileiro classifica como crime tanto a injúria racial quanto o racismo em suas respectivas categorias. A lei n°140 parágrafo 3° regida pelo código penal, relata o crime de injúria racial. O artigo 5°, previsto na lei n° 7.716/1989, mostra as consequências para o crime de racismo.
O advogado criminalista, Caius Lacerda, 30 anos, explica que a injúria racial é aquela que tenta diminuir a pessoa por ela ser nativa de outro País, acompanhado de um xingamento ou exposição em público, com base em um preconceito racial que é qualificado, pois a injúria racial tem um tratamento diferenciado no código penal. Caius explica ainda que a pena sobre a prisão é mais complicada de acontecer. Primeiro, porque quando a pessoa é condenada há um limite imposto, não classificado como grave complexidade, e, segundo, depende do contexto histórico que existe, não chegando ao ponto da pessoa ser levada ao cárcere.
Diferente da injúria racial, o racismo é inafiançável e se caracteriza por uma ofensa para todas as pessoas de uma determinada raça em geral, ou seja, não tem uma pessoa determinada que sofrerá o dano. O crime se enquadra em situações como: proibir a pessoa de prestar um concurso, vaga de emprego ou até mesmo impedir a entrada em um estabelecimento, violando os direitos de todo cidadão. Devido à quantidade de mensagens de pessoas que alegam ter sofrido preconceito devido sua origem asiática, o Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) lançou em portal uma Central de Denúncias. Nela, os dados são reunidos e transferidos para que as autoridades legais tomem as devidas precauções.
O advogado aponta para a pertinência desses meios alternativos como forma de mensuração de casos. “Ter um canal de denúncias é muito importante, uma forma eficaz de gerar conscientização. Acontece que os dados oficiais nem sempre condizem com os fatos, simplesmente porque a pessoa não relata às autoridades”. Ele explica que, dessa forma, é possível estimular as vítimas a relatarem o crime: “Esses canais são muito ostensivos, uma forma de proteção, pois quem sofre injúria racial nem sempre se sente a vontade de ir à delegacia ou ao Ministério Público”, conclui.Para acessar o canal, basta encaminhar um e-mail para: [email protected]. A orientação é que sejam informados os nomes completos, a data, local e horário, os relatos da ocorrência e, se possível, fotos ou vídeos.