Cruz

Novo coronavírus rouba a experiência do luto

Desde 25 março de 2020, o Ministério da Saúde anunciou os protocolos para velórios e sepultamentos. Segundo esses  protocolos, os falecidos podem ser enterrados ou cremados, mas os velórios e funerais de pacientes, confirmados ou suspeitos de Covid-19 devem evitar aglomerações. 

Durante o velório o caixão deve permanecer lacrado para evitar contato com o corpo e proteger a presença de pessoas do grupo de risco. O tempo da cerimônia também foi reduzido e restringiu-se ao máximo duas horas. Recomenda-se que as cerimônias fúnebres sejam feitas em locais abertos ou ventilados, com no máximo 10 pessoas, respeitando a distância mínima de 2 metros entre elas. Após o funeral, as pessoas que estavam presentes devem seguir o isolamento de 14 dias. 

Todos os dias centenas de pessoas perdem seus familiares vítimas do coronavírus. Segundo os dados do Ministério da Saúde, o número ainda é alto e por isso as pessoas que perdem ser entes queridos face a pandemia devem observar as determinações do Ministério. Para as famílias, no entanto, não tem sido fácil perder os parentes e muito menos despedir-se deles com cerimônias vazias.   

Angustia, tristeza e dor são sentimentos muito comuns em hospitais e cemitérios do Brasil.  C.M ( nome fictício ), do sexo feminino, 28 anos, recebeu a notícia  que seu pai havia falecido com suspeita de Covid-19  em um dos maiores hospitais públicos de São Paulo. Ela verbalizou entre muitas lágrimas e desespero o sentimento vivido nesta hora: “não poderei sequer dar um velório e enterro digno ao meu pai”. 

Acalentada pela mãe S.M.M, de 56 anos, que também estava abalada, porém, com demonstração de mais força, a filha recebia os afagos: “Calma filha, quando tudo passar vamos fazer uma cerimônia para as cinzas dele”.

Elaboração do luto

A elaboração do luto é um procedimento único e complicado. O processo compreende cinco fases a saber: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. A psicóloga Nadir Lopes explica que a ordem das fases depende de cada pessoa e que não necessariamente precisa passar por todas elas. “Cada um lida com sua dor de modo particular e a expressa de maneira singular”, pontua.

No mesmo hospital público de São Paulo, outra família demonstrava seus sentimentos de forma mais intensa. A esposa e uma das filhas precisaram ser contidas pelos seguranças do local, pois começaram a agredir verbalmente as enfermeiras e a quebrar materiais que estavam por perto, enquanto a outra filha gritava blasfêmias, questionando a existência de Deus :

 “Se Deus existisse não o teria levado, eu era católica, ontem mesmo dobrei meus joelhos e rezei para não levar meu pai, pedimos também para o hospital nos deixar fazer uma chamada de vídeo , meu pai se foi e não tivemos como nos despedir”, falava a moça em voz alta e com um olhar de raiva

Direitos roubados 

O fato dos familiares terem que acatar medidas preventivas para controle da pandemia, aumentou o sofrimento já existente e afeta diretamente as questões culturais de cada sociedade. Muitas famílias foram privadas das despedidas de seus entes, mesmo que de forma virtual, o que muitas vezes afloram outros sentimentos (remorso, sentimento de inutilidade, revolta).

Dona I.S.S ( nome preservado), de 78 anos, foi chamada juntamente com sua família para o boletim médico do hospital. A família acabava de ser informada do falecimento de um parente. A comoção foi geral, todos muito fragilizados pela perda de uma mãe, tia e irmã. Em meio ao desespero e choro dos familiares, ouve-se I.SS.: “Não tive o direito de me despedir da minha irmã, ela pediu para visitá-la, mas não me deixaram e agora nunca mais vou ver ela de novo”, reclamava aos prantos. 

A reportagem da AICom observou que o luto é um processo individual com reações diversas. O apoio a quem está de luto é muito importante, mesmo que a distância (rede de apoio familiar, amigos, ajuda especializada). É importante não permitir que a pessoa sofra sozinha, pois esse processo é mais um ponto de reflexão trazida pelo isolamento social.

A tecnologia como solução para os momentos de luto 

A cerimônia fúnebre é um momento que ninguém gosta de passar. No entanto, é essencial para as pessoas que estão de luto se recuperarem da perda irreparável do seu ente querido. Trata-se da ocasião para expressar emoções e sentimentos, para demonstrar o quanto aquela pessoa era amada pelos parentes que estão a sua volta no  momento da despedida. Não tendo esse momento, o enlutado tem grandes chances de ficar depressivo e angustiado, sem poder desabafar. 

Pelo fato das pessoas não  poderem enterrar seus mortos da maneira correta, a situação  modifica ritos religiosos que são feitos nos velórios. No catolicismo, por exemplo, os velórios são repletos de incenso, águas em lembrança ao batismo e a reza. A igreja protestante realiza orações e canções fúnebres, com muitas flores para homenagear quem partiu. No judaísmo, o corpo é lavado e vestido com uma túnica branca. A pandemia modificou os rituais e em quase todas as situações familiares mais próximos apenas puderam seguir ou tentar seguir esses costumes.

Segundo os dados da Defesa Civil italiana, o País europeu ultrapassou mais de 32 mil mortes no por Covid-19. Para amenizar a dor do luto, os italianos distribuíram tablets aos hospitais para que os pacientes pudessem interagir por videochamadas com seus familiares, dando um consolo.

Por estarem impedidas de fazer cerimônias, muitas pessoas estão aderindo a diversas plataformas que fazem chamadas de vídeo. O Skype, por exemplo, tem capacidade de juntar 50 pessoas ao mesmo tempo, com duração ilimitada. O aplicativo Zoom, embora tenha um foco corporativo, está entre as plataformas mais usadas. A novidade, sem dúvida, é o WhatsApp que dobrou para oito o número de chamadas. A tecnologia não substitui olho no olho, nem o abraço apertado, mas dá a possibilidade de parentes – que moram distantes – compartilhar a dor do luto.  

Os velórios e enterros são rituais que dão às famílias a oportunidade de se despedir,  homenagear e dar adeus ao falecido, fazendo suas orações ou cantando uma música que toque o coração. Com a tecnologia à disposição, pode-se reunir grupo de orações ou discursos de honra ao ente querido. Essas cerimônias virtuais podem ser feita a qualquer momento, no dia do velório, na cremação, na missa de sétimo dia ou quando tiver tempo. Outra vantagem dessas plataformas, é que a família pode revisar a cerimônia a qualquer hora para aliviar a dor.  

Diante do caos que a pandemia trouxe e a dificuldade encontradas pelos familiares nas despedidas e no velar o corpo, cujo tempo também foi reduzido, a união de toda família é o ato mais importante, mesmo virtualmente, acolhendo um ao outro de diversas formas. Enquanto não houver melhoria nos números da contaminação, pouco se pode esperar sobre mudanças nas cerimónias fúnebres. Será preciso reduzir o número de contaminação para que  Ministério da Saúde autorize a forma tradicional dos enterros e velórios.