Entregador de aplicativo

Cresce a precarização do trabalho durante o isolamento

‘O Privilégio da Servidão’ é o título do livro lançado pelo sociólogo Ricardo Antunes em 2018. Antunes é um dos maiores especialistas em sociologia do trabalho no Brasil. Em seu livro fez uma análise da precarização do trabalho e os possíveis caminhos para a emancipação do trabalhador desse sistema corrosivo. O título contraditório, carrega um significado pessimista, segundo as palavras do próprio Antunes em entrevista concedida ao canal Boitempo: o mercado de trabalho chegou a tal ponto que para o trabalhador, antes vale estar precarizado do que desempregado.

Apesar de grande parte dos trabalhadores estarem cumprindo suas horas de trabalho remotamente, no chamado home office, milhares de trabalhadores informais não podem contar com esse modelo. Hoje o Brasil soma pouco menos de 20 milhões de trabalhadores informais, incluindo quem trabalha com os aplicativo de entrega. 

Diante de alguns serviços decretados como essenciais, como farmácias e restaurantes, uma categoria chama a atenção: os entregadores de aplicativos, um dos serviços que mais sofrem com a precarização do trabalho. Agora, para além da exploração pautada nas horas excessivas de trabalho, estímulo de competição, baixa remuneração e ausência de ascensão profissional, o quadro engloba todos esses fatores com o adicional do risco de contaminação pela Covid-19, em razão da exposição diária na rua ou no ambiente de trabalho e, principalmente, com a falta de equipamento de proteção.

Precarização a todo vapor

Segundo dados da GS&NPD, o mercado de entrega de comida movimenta 17 bilhões ao ano no Brasil. Em março, com as regras de isolamento social decretadas no país, a Rappi registou um aumento de 30% nos pedidos, a iFood teve um aumento de 11,3% com relação ao mês de fevereiro e o número de cadastro no aplicativo dobrou. 

Embora a demanda de pedidos nos aplicativos tenha crescido e como consequência seu lucro (mesmo com os dados não divulgados), a categoria de motoboys percebeu a sua demanda aumentar e o salário não corresponder a esse aumento, mas, pelo contrário, diminuir.Informações sobre o valor exato que os aplicativos pagam por entrega para o trabalhador não são divulgados. Algumas reportagens indicam, por exemplo, que a Uber Eats detém 30% do valor do pedido e mais uma parte significativa da taxa de entrega, que varia conforme o aplicativo. Na Rappi, o valor é estimado em R$4,30, na Uber Eats R$3,95 e no iFood o valor em torno de R$5,00.

Ocorreu que no dia 17 de abril, entregadores de aplicativos fizeram um protesto nas principais vias de São Paulo, reivindicando seus direitos, como salário mais justo. Eles protestaram ainda contra a falta de equipamento de proteção, como máscara e álcool em gel. Esses equipamentos não foram fornecidos pelas empresas, fazendo com que os próprios trabalhadores arcassem com o custo, sendo que muitos não conseguem pagar por essa proteção. 

Em uma realidade na qual, segundo um estudo do Instituto Locomotiva, 4 milhões de pessoas hoje trabalham para esses aplicativos, sendo 3,8 milhões delas, ou seja, quase a totalidade, tendo o serviço como principal renda, há um descaso com a saúde desses trabalhadores de ampla magnitude.

A negligência com essa categoria ocorre em razão da falta do vínculo empregatício. A empresa se vende como uma “mediadora”, cuja função é de apenas disponibilizar o aplicativo, ou seja, o aparato tecnológico que irá fazer a mediação entre o restaurante e o cliente, assim isentando sua responsabilidade com o entregador, que fica apenas com o vínculo de “parceiro” desta empresa.

Sobre a reivindicação dos direitos dessa categoria, o advogado especialista em Direito do Trabalho, Hugo Fonseca, explica que a falta de reconhecimento do vínculo empregatício entre os entregadores e a empresa dificulta que normas de segurança e higiene previstas na Constituição sejam implementadas. “Apesar de a legislação trabalhista ser firme ao responsabilizar os empregadores pela garantia da integridade física de seus funcionários, os entregadores de aplicativos de delivery, por serem considerados trabalhadores autônomos, dependem do ajuizamento de ação trabalhista para exigir das empresas a adoção de medidas de saúde e higiene previstas na lei trabalhista”, pontua. 

“No iFood, por exemplo, consta dos termos de uso do entregador o seguinte: a atividade de entrega, bem como quaisquer perdas, prejuízos ou danos decorrentes ou relativas a tal atividade, são de responsabilidade exclusiva dos entregadores”, explica Fonseca. Em abril, a empresa conseguiu derrubar uma liminar que a obrigava a pagar um salário mínimo para trabalhadores com suspeita ou diagnóstico de Covid-19, junto da obrigação de distribuir equipamentos de proteção individual (álcool em gel e máscara) e disponibilizar espaços para a higienização do veículo, bag e capacete. A desembargadora Dóris Ribeiro Prina, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) derrubou a liminar sob alegação de que a relação da empresa com os entregadores não se caracterizava como relação trabalhista, ou seja, na falta de vínculo empregatício não há o que contestar.

Como forma de dar assistência, o iFood criou um fundo de 50 milhões aos restaurantes. Somente 1 mês depois da pandemia já instaurada no país, a empresa criou mais um fundo de 2 milhões de reais aos entregadores que fazem parte do grupo de risco e aos que adoecerem de Covid-19, precisando cumprir a quarentena. Essa disparidade de valor na assistência entre restaurantes e empregados somente reforça o quanto essas empresas de aplicativo desprezam sua maior força motora: os entregadores.

A uberização do trabalho é um termo usado para se referir a essa modalidade que atua com a isenção do vínculo empregatício e por demanda. Popularizado com o aplicativo de viagem, o modelo foi se adaptando a outras modalidades, como entrega de comida, serviço de limpeza, aulas e serviço de locução. Para o sociólogo Antunes, hoje vivemos em uma “sociedade do trabalho intermitente”. Toda a força de trabalho caminha para funcionar sob a forma de demanda, ou seja, quando não há trabalho, não há salário. O vínculo empregatício se tornou uma peça rara e hoje é vista como privilégio de poucos. 

Porém, a agressividade desse modelo neoliberal tem hoje encontrado dificuldades para atuar em alguns países, justamente pelas falhas que esse serviço tem com a falta de regulamentação. No dia 1 de fevereiro deste ano, a Uber encerrou suas atividades na Colômbia, o país considerou que a empresa violava leis que regulamentam o transporte local. A empresa atuava naquele país desde 2013. Também foi banida em diversos países da europa como Alemanha, Dinamarca e Hungria. Enfrenta problemas na Inglaterra, Itália e mesmo na terra do capitalismo, Estados Unidos, nos estados de Nova Iorque e Califórnia. 

“A principal forma de enfrentar as fraudes cometidas por essas empresas é a união dos trabalhadores para articulações políticas e jurídicas. A ausência do vínculo empregatício e a ideia de que são profissionais autônomos, os afastam uns dos outros. Contudo, as redes sociais podem ser um instrumento importante para a organização coletiva”, pontua Fonseca.